

Breves notas sobre a constitucionalização do Processo Penal no Brasil.
A norma mater do Estado, a Constituição Federal, dispõe em seu texto princípios e regras acerca da forma de Estado, de governo, de ordem econômica pública, bem como, garantias fundamentais individuais, sociais e transindividuais. Conforme as lições do austríaco Hans Kelsen[1], a constituição se sobrepõe a qualquer norma vigente no ordenamento jurídico e todas as demais normas dever-se-ão seguir os preceitos ali dispostos.
Todavia, a democratização da Carta da República é jovial, vez que há pouco completara 30 anos. Nesse sentido, cumpre frisar que, o Código de Processo Penal, diploma legal que rege o processamento (o como processar) dos acusados de praticarem fato abrangendo previsão legal deletéria, data do ano de 1941 e diversos de seus dispositivos fogem do lume democrático de coisas.
Alinhando-se ao viés garantista norteador da vigente constituição tem-se, como explica Carrara “a presunção de inocência como espinha dorsal do processo”[2]. Tal princípio se desdobra em outras garantias fundamentais, como a ampla defesa (plenitude de defesa conquanto ao júri), contraditório, devido processo legal e jurisdicionalidade.
O atual Código de Processo Penal, promulgado na “Era Vargas” durante o “Estado Novo”, entrou em vigor em 1942. A nova legislatura de procedimentos penais tinha já em sua exposição de motivos que viria a reduzir as “garantias e favores” (o grande favor de ser acusado de delinquir (?)) valendo-se do discurso nacionalista de que fosse “abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre a da tutela social” inspirado no Codice di Procedura Penale, italiano de 1930 (período mussolínico), de forte traço inquisitorial, seu principal texto legislativo.
Ferrajoli disserta que durante a Idade Média o viés inquisitorial do processo penal se apresentava na medida que a dúvida não alastrava a inocência, mas uma espécie de semiprova, semiculpa, e consequentemente, semicondenação[3], Foucault segue o entendimento em referência ao Estado Absolutista[4]. O que se extrai de tal período é do que não deve ser um sistema processual penal minimamente equilibrado e justo[5].
A supressão dos direitos de defesa viria, inclusive, em vilipêndio ao processo legislativo democrático (nada familiar ao contexto histórico que fora produzido tal diploma legal), ao passo que, assim como o Código Penal, o Código de Processo Penal também é um decreto-lei imposto por Getúlio Vargas durante a ditadura.
Exemplificando, o Código de Processo Penal taxava quatro hipóteses de segregação antes do julgamento: a prisão em flagrante; a prisão preventiva; a prisão após sentença condenatória de 1ª Instância e após a decisão de pronúncia. Há frisar que, quanto às duas últimas, o recolhimento prisional era automático.[6]
Todavia, em 1973 (voi la, outra ditadura), com o advento da Lei 5.941/1973, abriu-se a possibilidade do acusado ser julgado em liberdade se primário e de bons antecedentes. Causa estranheza uma lei de ampliação da esfera defensiva ter sido publicada durante uma ditadura militar reconhecidamente violenta e supressora das liberdades individuais, não somente do gozo o direito de ir e vir, que teve seu episódio mais cruento conquanto o governo Médici.
Tal consagração ao basilar da presunção de inocência não sobreveio ao curso do processo penal brasileiro de boa maneira, por assim dizer. Isso porque, apesar de socorrer do cárcere quem era penalmente processado (portanto, processo em curso), tal diploma legal objetivava a soltura do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops paulista, evitando que o mesmo fosse para a cadeia por seu envolvimento nas execuções do Esquadrão da Morte. Não obstante a lei ficou conhecida como Lei Fleury.[7]
Conseguinte, quinze anos depois, em 1988 fora editada a Constituição Cidadã e num engatinhar democrático, em sua maioria no artigo 5º (ditos direitos e garantias fundamentais) trazia-se à baila o fenômeno da democratização do processo penal conferindo-lhe seu primário caráter: direito à liberdade do cidadão em face do direito de punir do Estado.
Para efetivar os direitos de defesa foram arrolados alguns dispositivos no artigo quinto da Constituição Federal, como a jurisdicionariedade, do inciso LIII que se funda no direito de ter uma autoridade competente para julgar o cidadão, amplitude (e plenitude no tocante aos crimes dolosos contra à vida) de defesa e contraditório, inciso LV, e da proibição e consequente nulidade das condenações baseadas em provas ilícitas, inciso LVI, exemplificando.
Sobretudo, também fora redigido a título de garantia fundamental (leia-se mínima), o direito à liberdade de ir e vir propriamente dito disposto no artigo 5º, LVII, e o asseguramento do trânsito em julgado, no inciso LVI, garantindo-lhe a presunção de inocência até que exauridos todos os meios de defesa possíveis dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Daí se decorre que a liberdade é a regra, todavia, como citado pela doutrina de Alexy, princípios são cumpridos, ou não, em sua máxima otimização.
A exceção, portanto, está no eventual cometimento de crime e o consequente estado de flagrância do suspeito, que, após a devida realização da audiência de custódia, na forma do artigo 287 do Código de Processo Penal, deverá ter sua prisão relaxada, retomando o status quo libertatis ou decretada a prisão preventiva do agente, desde que adequado a fórmula legal dos artigos 310 e 312 do mesmo diploma legal.
Conseguinte, com a Constituição Federal já em vigor houvera um retrocesso tangente à segregação da liberdade dos cidadãos uma vez que aprovada a Lei 7960/89. O referido diploma legal fazia uma “recolocação de mercado” da prisão para averiguação tão criticada nos momentos sombrios à democracia brasileira durante a ditadura militar. Nada mais era que uma utilização da prisão sem a garantia de processo como instrumento epistemológico.
Afora a constrição de liberdade, a democratização do processo penal perpassou seu grande avanço quando, em 2003, foi consagrado ao réu o já constitucional direito ao silêncio[8]. Tal basilar defensivo desvela o princípio de não produzir prova contra si (nemo tenetur se detegere) e, conforme aduz Aury Lopes Jr.[9], define-se a um direito de não fazer, não esclarecer e não colaborar com diligências que possam acarretar, de qualquer forma, no agravamento da situação do Acusado na persecução penal e consequentemente, na sua formação de culpa.
Cinco anos após, com o advento da Lei 11.690/08, fora recepcionado (em tese) pelo ordenamento jurídico brasileiro o cross examination. O sistema confere o exame cruzado na produção da prova oral, dando-se ao polo ativo da ação penal, a acusação, o primário da inquirição, seguido pela defesa e, “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição” na letra do artigo 212, parágrafo único do Código de Processo Penal.
Tal avanço no processo penal democrático nem sempre é efetivado, ao passo que alguns magistrados relutam seu papel imparcial na procedimentalística, partindo, de fato, para a produção da prova. A ginástica processual inquisitória não se cessa aí.
A jurisprudência sustenta que ainda que haja o desrespeito direto da norma processual em tela, só há a nulidade do ato quando verificado o prejuízo no mesmo, “graças” ao princípio da pas de nullite sans grief. Conseguinte, em mais uma batalha, dez anos depois da vigência do dispositivo em debate, foi decidido no Habeas Corpus 111.815 no Supremo Tribunal Federal que o juiz que preside os trabalhos deve observar a ordem na inquirição das testemunhas, bem como, no interrogatório do acusado quando exercita sua defesa.
Pela mesma reforma legislativa no ano de 2008 foram reduzidas de cinco para três as hipóteses de prisão preteritamente ao trânsito em julgado. Se hoje há a prisão em flagrante, temporária e preventiva, outrora também existiram o recolhimento após sentença condenatória em 1ª instância e a prisão decorrente da pronúncia.
Concernente à prisão após sentença condenatória de primeiro grau cumpre mencionar um particular. O réu, para ter efetivado seu direito ao duplo grau de jurisdição e também à ampla defesa, só teria seu recurso de apelação conhecido se fosse recolhido conforme extinto artigo 394 do codex processualista penal.
Já quanto a prisão após a pronúncia (decisão que conduz o réu para julgamento pelo plenário de júri) tem-se que a inversão de valores constitucionais basilares impunha que a regra era a prisão ao invés da liberdade. Todavia, analisa-se que a decisão de pronúncia tem seu condão como decisão mista não terminativa, vez que não condena ou absolve alguém. Mas segregava, fazendo do réu prestador da própria liberdade a fim de gozar do direito à jurisdição.
Pelos requisitos da pronúncia tem-se como ainda é hoje que, bastam indícios suficientes de autoria e materialidade para dar o réu ao povo para seu julgamento. Sem falar no ultrajante e manifestamente inconstitucional in dubio pro societate que, às escusas, dispõe que na dúvida deixa-se o réu ao plenário sob pena de extrair a competência do julgamento dos crimes dolosos contra à vida dos cidadãos. Ilógico, haja vista a ausência de previsão legal para a confecção de decisões judiciais nesse sentido.
A prisão no júri ainda é motivo de debate acerca de constitucionalidade quando se traz à baila a súmula 21 do Superior Tribunal de Justiça dispondo que “pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo da instrução”. Ou seja: adequação e proporcionalidade na constrição de liberdade cautelar são dispensadas se presentes os requisitos da pronúncia.
O “dolo legal” em prender era evidente ainda quando verifica-se que medidas cautelares alternativas à prisão só foram inseridas no ordenamento jurídico brasileiro em 2011. Para Feldens a proporcionalidade norteia a inserção de medidas acautelatórias contra o acusado em prol da consagração da liberdade. Sustenta com o desenvolvido pela doutrina e jurisprudência alemãs, é alcançável a partir de um raciocínio escalonado, trifásico, envolvendo as parciais que analiticamente a estruturam: os exames de adequação (idoneidade), necessidade (exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito[10]. Cumpre mencionar que, ainda que sua aplicação seja discreta, foi forçosa a vitória do processo penal democrático ao, ad minimum, taxar possibilidades de retirar do cárcere quem já vive o malgrado de se ver no banco dos réus.
Atualmente, em 2020, ainda promulgado o Código de Processo Penal da Era Vargas, tem-se que suas incongruências são escandalosas aos dispositivos garantistas da carta primaveril. Também, há frisar que, as benesses trazidas pela Lei 13.964/19 como o juiz das garantias e a exaltação ao patamar legal da audiência de custódia não olvidam o diploma legal das inconstitucionalidades oriundas da produção legal pela “comissão de um homem só” do então Ministro Sergio Moro. A segregação ante tempus no tribunal do povo é a mais evidente destas.
Por derradeiro, cumpre frisar que o flerte autoritário que se emana atualmente não pode pairar sobre a instituição do Processo Penal de matiz constitucional-democrática, logo. a luta por constitucionalizar tal instituto ainda tem deveras batalhas a serem superadas. Oportuno mencionar, conforme dispõe Deleuze[11] “em nível molar, ninguém se declara fascista”. O fascismo aparece justamente no nível molecular, no nível da segmentariedade flexível e subjetiva. É no nível molecular que se promove a subordinação da Constituição a sentimentos autoritários, portanto, que não se jogue a poeira abaixo do tapete justificando-a pela retórica maquiavélica que os fins justificam os meios. O Estado faz os meios e os meios devem ser cumpridos sob pena de quebrar as regras do jogo processual. Se não respeitam as regras, não há jogo. Há mera partida figurativa que destoa do cunho democrático, indisponibilizando à defesa, pelo menos, o direito de defender-se.
Texto escrito por Lucas Spessatto.
[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo, 1987, p. 240
[2] CARRARA, Francesco. Programa del Curso de Derecho Criminal Dictado en la Real Universidad de Pisa. v. II. Trad. de Sebastián Soler R. Gavier e Ricardo C. Nuñes. Buenos Aires: Depalma, 1944
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 506
[4] “A culpa não começava uma vez reunidas todas as provas: peça por peça, ela era constituída por cada um dos elementos que permitiam reconhecer um culpado. Assim, uma meia-prova não deixava inocente o suspeito enquanto não fosse completada: fazia dele um meio-culpado (…) Enfim, a demonstração em matéria penal não obedecia a um sistema dualista: verdadeiro ou falso; mas um princípio da graduação contínua: um grau atingido na demonstração já formava um grau de culpa e implicada consequentemente num grau de punição” em FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20ª Edição. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. p. 60-61.
[5] MORAES, Maurício Zanoide de, in Presunção de inocência no Processo Penal Brasileiro, ed. Lumen Juris, 2010, p70.
[6] Art. 408. Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento.
1º Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, mandará lançar-lhe o nome no rol dos culpados, recomenda-lo-á, na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para a sua captura.
(…)
Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se á prisão, ou prestar fiança, salvo se condenado por crime de que se livre solto.
Art. 596. A apelação de sentença absolutória não impedirá, que o réu seja posto imediatamente em liberdade, salvo nos processos por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a oito anos.
Ainda, E era também automática a prisão preventiva para os crimes cuja pena prevista fosse superior a 10 anos, Foi somente em 1967, durante o regime militar, que se incorporaram os requisitos da garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.
Art. 312. A prisão preventiva será decretada nos crimes a que for cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos.
[7] https://memorialdademocracia.com.br/card/nova-lei-penal-salva-o-delegado-fleury
[8] Antes da modificação legislativa a redação do artigo 186 do Código de Processo Penal definia que “o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”.
[9] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Volume 1. 4 ed. rev. E atual. Rio de Janeiro: lúmen júris, 2009. p. 206
[10]FELDENS, Luciano. A Constituição Penal. A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 161.
[11] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Tradução Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1996.